Romero, para além dos zumbis

1940 – 2017

Com grande pesar é que os fãs do cinema de terror acolhemos a notícia da morte de George A. Romero. Um dos grandes mestres do género, sempre demonstrou um excepcional sentido do humor e um interesse por questões sociopolíticas bem visível na sua obra.
De ascendência galega, este realizador mostrou uma notável capacidade para tirar rendimento de orçamentos limitados, o que inspirou um estilo naturalista independente do carácter fantástico das tramas. Talvez o melhor exemplo disto é o seu filme mais reconhecido, o maravilhoso Night of the Living Dead (1968). Embebido do clima contra-cultural de finais da década de 1960, e de modo inconsciente, na narração deste filme cristalizam as tensões sociais da época. O feliz cúmulo de decisões improvisadas por Image Ten Productions, grupo de jovens amigos de Romero; fez com que Night of the Living Dead desenvolvesse um subtexto progressista face o racismo e o conservadorismo dos Estados Unidos da altura. A relevância histórica desta produção não é apenas visível na quantidade de imitações e sequências apócrifas que inspirou, senão também na própria imagem moderna dos zumbis, autêntica responsabilidade de George A. Romero.

Night of the Living Dead (1968)

Ele próprio dedicou boa parte da sua carreira a alargar o universo dos mortos-vivos com até cinco sequências, de fortuna díspar, do seu grande êxito. Nelas abandona já toda subtileza e emprega este cenário de Apocalipse para realizar um comentário crítico sobre diversos aspectos da sociedade capitalista: o consumismo (Dawn of the Dead), o progresso científico face a irracionalidade militarista (Day of the Dead) ou a luta de classes (Land of the Dead).

Martin (1977)

Mas Romero foi além do próprio subgénero zumbi. Fora de alguma irregular incursão no género erótico ou de aventuras, mantém o espírito crítico com The Crazies (1973). Nele os militares gerem de modo desastroso uma epidemia numa pequena vila onde os rednecks enlouquecem. Especialmente recomendável é a desmistificação em Martin (1977), que retira todo elemento sobrenatural ao vampirismo para o observar desde uma perspectiva psicopatológica.

Creepshow (1982)

Já na década de 1980, Romero é reconhecido como um dos pesos pesados do terror através das suas colaborações com outros grandes do género, como Stephen King, Tom Savini ou Dario Argento. Em base a alguns relatos do primeiro, realiza uma linda homenagem à banda desenhada de horror clássica (do tipo Tales from the Crypt) na sua antologia Creepshow (1982). Este filme contém uma das cenas mais assustadoras do cinema segundo a série documental The 100 Scariest Movie Moments. Cena terrífica que é melhor nem comentar. Participará ademais como guionista na sequência Creepshow 2. Volverá a colaborar com King em The Dark Half (1993). Com Argento dividirá uma antologia de duas histórias baseadas em relatos de Edgar Allan Poe em Due occhi diabolici (1990). Romero será responsável pela adaptação de O Estranho Caso do Sr. Valdemar.

Monkey Shines (1988)

Contudo, o filme mais destacável desta época, se excluirmos os da saga dos mortos-vivos, é Monkey Shines (1988); ao meu juízo, não suficientemente valorizado. Nele narra a história do atleta Allan Mann (Jason Beghe), quem fica quadriplégico depois dum acidente. Para facilitar a sua vida na nova situação, confia-se-lhe uma macaca experimental destinada ao seu serviço. Desenvolve uma ligação especial com a personagem animal que se volverá problemática quando esta decida assassinar todo aquele que desconforta Allan. E também, claro, quando o dono acorde os ciúmes da macaca ao iniciar uma relação romântica.
Com Bruiser (2000) revitaliza a causticidade social e a leitura amarga da natureza humana. Desde então, focaliza-se na saga dos zumbis. De facto, estava a trabalhar em Road of the Dead, projecto que definiu como um «The Fast and the Furious com zumbis», quando faleceu. E ainda afirmava estar a planificar uma sequência deste. Esperemos que Road of the Dead, de fazer-se finalmente, faça justiça ao legado do director.
Triste notícia então que se soma à perda de Wes Craven (2015), ambos membros duma dinastia prolífica de mestres do terror que conformaram os nossos pesadelos com o seu trabalho. Fica o consolo de saber que como muitos dos seus personagens nas suas obras, não estão realmente mortos.

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