O descrédito da heroicidade

Resulta tão frequente levar uma decepção quando um filme de terror é precedido duma imensa campanha promocional que, no caso de Brightburn, dá para levar uma gratificante surpresa. Esta visão perversa da conhecida história do puto kriptoniano caído na Terra, contem suficiente gore e sequências sinistras como para acabar destacada entre as recomendações do ano

O enredo é mais ou menos conhecido: Tori e Kyle Breyer (Elizabeth Banks e David Denman) são um casal que deseja ter descendência, mas os intentos não são bem sucedidos. O desejo de Tori é finalmente concedido quando uma misteriosa espaçonave cai na fazenda dos Breyer. No seu interior há um bebé que criam como próprio, ocultando a sua origem extraterrestre tanto à comunidade como à própria criança. Na sua puberdade, Brandon (Jackson A. Dunn) descobre que tem poderes especiais. No lugar de virar num cívico Clark Kent, torna-se um pequeno bastardo imparável que impõe a sua vontade pela força. E por que quereria ser um Clark Kent? Por que deveria passar por bullyng ou submeter-se à autoridade dos adultos, tão arbitraria como parece quando és adolescente? Brandon racha com isso do modo mais extremo porque pode. Tori e Kyle enfrentam-se assim ao dilema do que fazer como pais neste caso.


O paralelismo entre as histórias de Brandon Breyer e Clark Kent situa Brightburn num conjunto de filmes que se poderiam rotular como “descrédito do heroísmo”. Apesar de ter antecedentes em personagens como o Hugo Hercules de Wilhelm H.D. Körner (1902), os super-heróis desenvolvem-se plenamente como género na era dourada da banda desenhada norte-americana, nos anos 40, numa época de optimismo e apelos patrióticos (II Guerra Mundial); e constituem uma evolução de certos aspectos das publicações pulp de ficção científica. A estrutura é mais ou menos comum: por razões naturais ou circunstâncias sobrevindas, um indivíduo ou pequeno grupo dispõem de poderes especiais ou vantagens que empregam para defender a justiça e proteger os vulneráveis.
Os fortes princípios morais no que se sustenta o arquétipo do super-herói serão erodidos na era de bronze da banda desenhada (anos 70), quando o género se faz auto-consciente e repara nos viesses de raça, classe ou género que continham as populares histórias de após-guerra. Para além da influência do underground ou da incorporação de artistas europeus ao campo norte-americano, seria preciso assinalar o clima cultural na altura como verdadeiro responsável desta contestação.


Apesar dalgum precedente destacável, como Condorman (1981) ou a série The Greatest American Hero (1981), onde se parodiam os típicos super-heróis, o cinema questionará o heroísmo muito especialmente desde o 11 de Setembro de 2001. O ataque às Torres Gémeas revela a vulnerabilidade dos Estados Unidos, até então, seguros na sua arrogância de super-potência. A reacção belicista posterior levanta sérios problema éticos sobre o papel da intervenção norte-americana no exterior. Estas dúvidas estão presentes no fundo da fiel adaptação cinematográfica que Zack Snyder realizou de Watchmen (2009), novela gráfica já clássica de Alan Moore e Dave Gibbons. Nesse universo, os super-heróis não apenas se envolvem em comportamentos disfuncionais e reprováveis, como chegam a pôr em risco a própria humanidade na defesa da ordem social. Esse mesmo ano, e num plano mais modesto e dramático, Woody Harrelson punha a carapuça para representar Defendor, quem constitui aquilo que um vigilante é no mundo real: um louco. Em termos parecidos, mas em chave de comédia, James Gunn reunia Rainn Wilson e Ellen Page em Super (2010), onde se incide no ridículo dos justiceiros mascarados. O paroxismo nesta linha chegou recentemente com a adaptação da série de quadrinhos The Boys (2019), onde os super-heróis, ao serviço do capitalismo corporativo, põem em risco a democracia enquanto se entregam a todo género de excessos e exibem os piores rasgos do nosso tempo: machismo, populismo, fanatismo religioso, dupla moral…


No caso que nos ocupa, Brightburn remete a uma cita de Julio Cortazar em El Diario de Andrés Fava:
«Pavadas que se dicen: “Si tuviera fuerza suficiente, no permitiría esto o aquello”. Es posible, si la fuerza te fuera dada ahora, milagrosamente. Pero si hubieras crecido envuelto en tu fuerza, esclavo de tu fuerza, estarías del lado de los que pegan


É assim que Brightburn está ligada a filmes como The Invisible Man (1933), onde a aquisição ou consciência do próprio poder acaba com a humanidade do portador. Também com esta última tem um defeito em comum: na insistência do filme clássico nos efeitos da monocaína no comportamento do dr. Griffin ou a influência da espaçonave, oculta no celeiro, no agir de Brandon; ambos filmes parecem não querer assumir o que talvez seja o seu argumento mais terrífico, aquilo que revelam sobre a natureza humana.

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