Carne, ouro e formigas

Elina Löwensohn digna como femme fatale.

Talvez resulte incompreensível. Mas sou bastante defensor do trabalho de Hélène Cattet e Bruno Forzani. Os realizadores belgas volvem deleitar-nos com uma obra que leva a sua já reconhecida impressão.
Desde inícios do presente século exploraram o thriller de estilo italiano em diversas curta-metragens (Chambre jaune, L’etrange portrait de le dame en jaune) e que cristalizaria numa belíssima obra seminal, inauguradora dum sub-género neo-giallo que parece não acabar de consolidar-se. Trata-se de Amer, onde os elementos tópicos do giallo são reordenados para compor uma original história sinistra em três actos sobre o trânsito que realiza uma mulher desde a infância e a puberdade, até a madurez sexual. Depois participaram na antologia The ABCs of Death com a curta experimental O is for Orgasm. Com o mesmo espírito, um ano mais tarde apresentaram a sua segunda longa L’étrange couleur des larmes de ton corps; filme muito especial a nível visual, mas certamente chato à hora de discernir uma linha narrativa clara. Dentro da ininteligibilidade, assistimos à desesperada procura duma mulher desaparecida por parte do seu marido. Uma procura que se desenvolve na própria morada do casal, um majestoso prédio de estilo art nouveau, com corredores segredos e esquisitices díspares.

Laissez bronzer les cadavres! é um spaghetti western contemporâneo.

Com Laissez bronzer les cadavres!, Hélène Cattet e Bruno Forzani afastam-se do giallo; mas não vão demasiado longe. O filme é uma adaptação do romance hard boiled homónimo de Jean-Pierre Bastid; algo que poderia ter dado num produto neo-noir, mas que acaba por ser um spaghetti western moderno e experimental. Nele, a pintora Luce (Elina Löwensohn) convive numas ruínas duma ilha mediterrânea com o escritor alcoólico e ex-amante Max Bernier (Marc Barbé), e o actual partenaire Brisorgueil (Michelangelo Marchese). Este último tem três amigos na ilha que, aproveitando uma compra de carne numa vila próxima, assaltam um furgão cheio de barras de ouro. Decidem refugiar-se nas ruínas com os artistas, mas no caminho topam a ex-mulher do escritor, o seu enteado e a babá; quem exigem ser levados até Max. Os rufias decidem fingir normalidade e dar boleia, acrescentando tensão familiar nas ruínas ao difícil plano de ocultação da pilhagem. Os únicos ingredientes que faltam para que o cocktail vire numa explosão de sangue e chumbo é a aparição imprevista de dois agentes da polícia. À luta pela supervivência, acrescenta-se a aparição de desconfianças entre a banda de assaltantes sobre o destino do ouro roubado.

O simbolismo é omnipresente num filme narrativamente complexo.

Laissez bronzer les cadavres! é um autêntico festival para os sentidos, algo que começa a ser costume nos belgas. A narração “realista” está dominada pela criatividade da montagem, com muita presença dos planos-detalhe, montagem paralela, filtros, etc. Aliás, a narração está salpicada de sequências de natureza onírica duma sensualidade desmedida e fetichista; representada num jogo cromático e simbólico de luzes e sombras que em muitas ocasiões remete aos giallos de Sergio Martino. A dura sonoridade dos disparos vai acompanhada por uma elegante reciclagem de clássicas trilhas sonoras autoria de Morricone ou Nico Fidenco; melodias tomadas não por acaso de filmes como La route de Salina, Faccia a Faccia ou Giornata Nera per l’Ariete.

As cenas oníricas são uma verdadeira maravilha.

No avesso deste brilhante exercício de estilo está a própria história. O protagonismo da forma situa num claro plano secundário o contido que, de modo evidente desde o incidente desencadeante, peca de falta de ritmo. Seja como for, na minha qualidade de torcedor destes realizadores, espero com impaciência o neo-giallo que anunciaram em Sitges e que pretende encerrar a trilogia iniciada com Amer.

  • A favor: Delícia sensorial.
  • Em contra: História demasiado complexa e terceiro acto demasiado dilatado.

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