Os espectadores picheleiros, no contexto do Cineuropa, puderam desfrutar ontem do filme que escandalizou Cannes e que colectou boas críticas em Sitges; a incluir Gaspar Noé, quem afirmou merecer o prémio Méliès de ouro. The House that Jack Built tem, não obstante, a assinatura de Lars von Trier; o que acostuma a significar várias coisas.
A primeira é que, com cada filme, Lars von Trier promove um bizantinismo lucrativo acerca de se é um génio ou um idiota. Esta polarização de crítica e público não ajuda a valorizar objectivamente ou a perceber os valores específicos de cada obra. Amas ou odeias Lars von Trier, não há escala de grises.
The House that Jack Built vinha apresentada como uma fita de terror, o que dava para ser optimista. Os anteriores trabalhos do realizador dinamarquês no género são algo mais do que interessantes. A divertida série Riget (1994) é uma pequena jóia que mereceu um remake norte-americano com o envolvimento do próprio Stephen King. Antichrist (2009) foi uma obra inquietante, incompreensivelmente subvalorizada, que propunha um terror psicológico e telúrico, e onde pudemos assistir a cenas de grande impacto emocional. O problema são alguns dos produtos deste director que antecedem o filme que nos ocupa; particularmente, essa insuportável porcaria sexploitation de elevado orçamento chamada Nymphomaniac. E dalgum modo, The House that Jack Built é uma espécie de Nymphomaniac do assassínio. Os amantes do género valorizarão alguns blocos dramáticos, mas deverão aguentar um tedioso diálogo expositivo cheio de pedantice e incoerências narrativas. Deve-se entender ademais que o filme parte duma ideia sugerida na soporífera Forbrydelsens element (1984) e que estava destinada a ser desenvolvida como série de televisão. Assim, a narração está dividida em seis capítulos que, condensados numa longa-metragem, acabam por ser reiterativos. Conclui aliás com um epílogo demencial que tem como único objectivo percebermos que aquilo foi dirigido por Lars von Trier.
Vamos por partes: The House that Jack Built começa como um thriller com momentos de humor negro (incidentes um e dois) onde vemos que Jack (Matt Dillon) é o que é, e o que será durante toda a metragem: um psicopata. Além disso, tem um transtorno obsessivo-compulsivo que acrescenta comicidade a assuntos pouco engraçados (incidente dois). No seu equador, o filme adopta uma perspectiva muito mais macabra (incidentes três e quatro). Sem abandonar um certo tom humorístico, o público assiste a sequências que requerem um estômago forte. Há uma situação a envolver uma mulher e os seus dois filhos, e a “manipulação” posterior das vítimas, que é mesmo difícil; mas que supõe algo transgressivo a respeito do tabu do terror com crianças. Também uma tortuosa cena com Riley Keough onde, como na anterior, o terror reside na antecipação da catástrofe. A partir de aqui, o filme descende aos poucos cara a vaidade do realizador.
Durante toda a metragem, o enredo é comentado por Jack e o misterioso personagem Verge (Bruno Ganz). A conversa, sempre num registo culto e de contido elevado, atravessa tematicamente vários elementos. Reflecte-se sobre o assassínio como bela arte e como adição. Expõe-se uma dicotomia humana moral que liga directamente com o niilismo alla Nietzsche. Infelizmente, a conversa dirige-se ao mesmo ponto aonde vai todo o filme: adquire gravidade com a interpretação de William Blake e acaba por adoptar uma visão transcendente sobre a matéria. No final, Lars von Trier acaba por enviar tudo para o inferno. Literalmente. É a parte que a crítica adora apesar de ser uma violação flagrante do universo narrativo. Acaso. Que se nos revelem Jack e Verg como transuntos de Dante e Virgílio na Divina Comédia, num desfecho histriónico e flamboyant, apenas tem sentido como gesto cara essa facção da midcult, os larsvontriistas, que aplaudirão como arte qualquer disparate que ponha o dinamarquês na tela. Também para provocar os anti-larsvontriistas que, ao seu modo involuntário, contribuem com a sua ira à promoção do filme.
Parem todos: valorizem o que há de terrífico e inquietante nos dois primeiros actos. Mas tenham a suficiente cabeça para ver o resto. Nele, há uma justificação da misoginia do realizador que lembra o humorista quem, tendo sido censurado por incomodar com uma piada e com a vontade de ser aceite, faz-se ele próprio objecto de brincadeira. Há também presunção e há non-sequitur. Mas sobretudo, há um monumento que Trier se constrói a si próprio.
- A favor: as sequências da família, do cadáver do menino e de “Simple”, são do mais perturbador que se viu este ano.
- Em contra: um clímax tão visualmente magnífico como desnecessário no contexto da narração.