Uma censura espanhola.

Acho que foi em 15 ou 16 de Outubro de 2010. Eu e um par de amigos conseguimos milagrosamente três entradas para o filme que se candidatava como dos mais polémicos do ano e que portanto, todo o mundo queria ver. Nós incluídos, claro.
Como amantes do terror, a proibição para menores, as advertências dos bilheteiros ou as alarmantes resenhas da publicações do Festival de Sitges, onde se projectava; não faziam mais do que aumentar o nosso desejo de assistir. Finalmente chegou o dia e… foda-se. A verdade é que saímos pálidos e confusos. Não dávamos crédito ao que acabávamos de ver e devo reconhecer que na altura, a pesar de alguma intuição aturdida,  era difícil valorizar o filme devido à crueza das cenas que continha.
As minhas reticências acabaram no dia a seguir, quando uma tertúlia de um programa matinal de um conhecido canal espanhol (Cuatro) conduzido por uma reputada jornalista (Concha García Campoy) decidiu, em base a uma crítica publicada no jornal direitista El Mundo, que esse filme não devia ser exibido e que quem acudimos à sua projecção éramos, no mínimo, uns degenerados.
Esta mostra do constrangedor clima intelectual espanhol não ficou aqui: uma associação integrista católica conseguiu a proibição da fita no Estado Espanhol, a sua retirada dos festivais de São Sebastião e de Molins, e a disparatada acusação de exibição de pornografia infantil que pesou sobre o director do Festival de Sitges até ser surpreendentemente retirada em 2012. E digo o de “surpreendentemente” não porque tivesse qualquer base, senão porque tudo é possível em Espanha.
Considerando que me nego pessoalmente a que grupelhos de ultra-direita estabeleçam o que pode ou não pode ser visto, decidi assistir sete vezes mais, no mínimo. E claro, a diferença dos 40 anos de regime fascista que teve de suportar Espanha (e colateralmente a Galiza, Catalunha, o País Basco…), hoje existem vias mais acessíveis para saltar a censura do que atravessar a fronteira em direcção a Perpinhã.
Este visionado “militante” ofereceu-me uma perspectiva um bocado mais ampla do que a percepção inicial de Srpski film me sugeria. Srpski film não é um produto recomendável na medida em que é evidente não ser para todos os públicos. Mas não é um simples filme exploitation: isto é, para além da polémica gerada por volta de muitas das suas cenas, o filme manifesta uma intenção e possui muitas qualidades que o descartam como algo que apenas procura o escândalo ou a provocação. O director e o guionista insistem em explicitar o carácter alegórico da narração através das intervenções do diabo faustiano Vukmir (Sergej Trifunovic) e do próprio título (“Um filme sérvio”).

O filme é explícito a respeito da sua intenção alegórica.

Em entrevistas e palestras, tanto Srđan Spasojević (director) como Aleksandar Radivojević (guionista), insistem em que a alegoria se bifurca em duas direcções críticas. Por um lado, constitui uma denúncia geral da situação sérvia, da manipulação e exploração que os dirigentes do país exercem sobre os cidadãos subalternos; aqui encarnados em Miloš (Srđan Todorović), cuja precária situação económica leva-o a entregar-se como actor a um director megalomaníaco e perverso (o anteriormente mencionado Vukmir) num misterioso filme que acaba por embrutece-lo e destruir toda a sua vida. Este último aspecto é o outro alvo de Srpski film segundo os seus responsáveis: a produção cinematográfica sérvia, a qual acham limitada pela correcção política e sujeita a um financiamento tanto interno como externo, o qual brinda um tratamento da realidade nacional estereotipado e distorcido.

Vukmir é como o diabo de Fausto, a oferecer uma falsa saída aos dilemas do herói.

Sem a necessidade de ser especialistas na história contemporânea ou na cultura sérvias, a narração oferece elementos “universais”, por assim dizer, perfeitamente reconhecíveis em outras latitudes do planeta. O repugnante diálogo na casa de Jeca (Anđela Nenadović) oferece um quadro interpretativo no que se banalizam e ligam de modo estreito os tópicos da patrioteirice, o patriarcado e a violência sexual. A caracterização da própria Jeca, como uma Alice no país das maravilhas (a ficção de Vukmir, a Sérvia representada nela), revela uma sinistra ironia não casual. O sexo ao que está exposta ela e todos os personagens vulneráveis da trama, omnipresente em toda a metragem, está demasiado longe de ser libertador. Não tem qualquer componente erótico ou sugestivo. Antes é uma arma de guerra, é um símbolo da opressão que pesa sobre as vítimas desde o nascimento até a morte. Este tratamento liga Srpski film com outras produções como Salò o le 120 giornate di Sodoma (1975) ou a sua compatriota e coetânea (e não menos dura) Zivot i smrt porno bande (2009).

Todo o filme é uma alegoria perversa (Jeca caracterizada de Alice)

As cenas difíceis foram amplamente aventadas pela polémica pública que levou o filme a ser amputado ou directamente proibido em vários países. Não pararemos nelas. O gore e as aberrações explícitas concentram-se nos últimos 50 minutos de metragem. Há que reconhecer o valor dos 50 primeiros na criação duma atmosfera tenebrosa e intimidadora. Os planos obscuros, a esquisita apresentação da família de Miloš (particularmente do filho e do irmão), dos seus colegas, do pessoal do filme de Vukmir, a sensação de irrealidade onírica do set de filmagem, a trilha sonora terrível… todo ligado ao conhecimento prévio do espectador, quem sabe que está a assistir um filme de terror; fazem já difícil de digerir Srpski film antes mesmo de que apareça o sangue e te salte na cara. Gera uma certa antecipação sobre as possíveis vias por onde há de transitar a narração, mas estas são tão extremas que provocam a dúvida e o desejo de que se desvie. Não se desvia, não há piedade. O olhar da plateia é dirigido pelo meio justo das piores perspectivas que sugere a introdução. E estas perspectivas são mostradas sem concessões, de uma maneira suja e desassossegadora. De facto, o “incidente” no minuto 50 que desencadeia o paroxístico desenlace é tão abrupto e grotesco que deixa o público resistente num estado de knock out, com o terror de perguntar-se como isso pode ser ultrapassado: o que é preciso aguardar a partir dessa altura? Estávamos a falar dum filme de terror, não estávamos? E este filme de terror consegue, depois de anos de decepções, que desejes ter próxima uma almofada onde cobrir ocasionalmente o rosto e desviar o olhar.

A introdução está marcada por um clima de intimidação sexual terrífico.

Apesar do status de culto que adquiriu o filme graças à sua perseguição legal, não parece ter beneficiado especialmente ao seu director, Srđan Spasojević; a quem não se conhecem mais intervenções além da peça R is for Removed incluída em The ABC of Death: uma curta também alegórica e, de modo menos explícito, tematicamente convergente com a sua longa-metragem. Recentemente anunciou-se que está a produzir (junto de Unearthed, Contra e Dire Wit Films) um documentário sobre esta, dirigida por Stephen Biro e Jason Koch. Leva por título A Serbian Documentary. Esperemos que arroje mais luz sobre sobre esta desvalorizada obra entre a hipocrisia e a pantominice dos de sempre.

A narração joga com a antecipação do desenlace trágico dos protagonistas.

 

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