A vida e os seus deveres fazem com que as prometidas revisões críticas dos filmes exibidos no Festival de Cinema Fantástico da Catalunha, estejam a demorar mais do que eu gostaria. Seja como for, dá para arranjar um momentinho e escrever sobre o documentário That’s La Morte: Italian Cult Cinema and the Years of Lead, o que ao mesmo tempo nos permite falar dum subgénero maravilhoso: o giallo.
Aqui já foi referido um trabalho anterior do seu autor, Xavier Mendik. Concretamente Tax Shelter Terrors, sobre o efeito das bonificações fiscais para a produção cinematográfica no Canadá dos anos 70 e a proliferação de toda uma série de filmes que fazem parte do que se conhece como canuxploitation, ou cinema de exploração canadense. Nesta ocasião, volve refletir sobre a relação entre a sociedade e a arte cinematográfica; mas deslocando o foco do Canadá para a Itália. Pela sua metragem, desfilam toda uma série de rostos conhecidos do cinema de culto transalpino: Edwige Fenech, George Hilton, Barbara Bouchet, Ruggero Deodato, Umberto Lenzi, Enzo G. Castellari, Dario Argento… Todo para observar a relação entre a série B itálica e um período histórico que se inicia no 68 e que abrange mais de uma década. Os anni di piombo enfrentarão a extrema esquerda (Brigate Rosse, Prima Linea, Potere Operaio, etc) com a República e os seus instrumentos legais (magistratura, polícia…) e ilegais (organizações da extrema direita). A escalada de ações armadas leva a nação para o limite da guerra civil, com um elevado número de vítimas, o magnicídio de Aldo Moro e até com 3 intentos de golpe de estado.
O documentário começa com o trabalho dos produtores Luciano Martino e Mino Loy, e do realizador Sergio Martino. Sem nenhuma pretensão, Mino Loy reconhece que o propósito do seu empreendimento era puramente comercial e não tinha outra orientação que a de produzir filmes que copiassem aquilo que estava a ser feito nos Estados Unidos da América. O desenvolvimento deste negócio derivava em resultados paradoxais, como a recuperação cinematográfica do passado histórico de Roma a raiz de copiar o peplum norte-americano. O documentário mal se detém no eurospy ou no spaghetti western, e nem menciona o terror gótico.
O centro de interesse de That’s La Morte são três subgéneros do exploitation: o giallo, o poliziotteschi e a comédia picante. Para cada um, a narração reserva diversos fenómenos sociais. O giallo, desde a ótica da académica Ruth Glynn, lida com a mudança de perspetivas sobre o sexo que se dá no final dos anos 60 num país eminentemente católico. Assim os gialli, estes thrillers sofisticados com elementos de terror, explorariam toda uma série de tabus e traumas sexuais; mas ao mesmo tempo, projetariam essas narrações fora das fronteiras italianas, como uma medida de preservar o senso comunitário nacional.
Os anos de chumbo são tratados especificamente no epígrafe do poliziotteschi. Não é preciso explicar demasiado: tratamos com thrillers centrados na ineficácia policial para combater uma criminalidade omnipresente. Com frequência, o enredo avança pela decisão do protagonista, geralmente um agente da lei, de empreender ações irregulares contra os facinorosos. É assim que o subgénero foi qualificado de fascista, entre as protestas no documentário de Umberto Lenzi. Castellari concede a inevitável defesa do status quo que implicam este tipo de enredos, mas também acaba de assinalar outro problema de interesse: quando intentou fazer um filme poliziottescho que acusava o estado da promoção da violência, a sua conclusão foi modificada pela censura existente ainda no país.
Finalmente, a comédia picante é observada como um refúgio nostálgico da sociedade italiana face a dureza da confrontação política contemporânea, mas também como uma reação do patriarcado ameaçado pelo empoderamento feminino, como uma expressão de ansiedade pela incorporação da mulher ao mercado de trabalho.
Se a intervenção dos vultos do cinema periférico da Italia já possui interesse per se; a orientação do documentário, claramente não. Os principais problemas são o seu excessivo esquematismo, a seleção apenas de casos que referendam a tese principal e a superficialidade com a que se trata um período histórico tão denso. Para começar, o título é enganoso: os anni di piombo apenas são tratados em relação ao poliziotteschi, enquanto o giallo e a comédia picante são filtrados desde a perspetiva de género, o que está bem, mas não é a promessa contida no título. E é possível dar resposta a essa promessa para os subgéneros ignorados. Reconheço não ter conhecimentos sobre a comédia picante, mas poderia citar La Patata Bollente (1979) como exemplo: com os elementos cómicos sobre equívocos sexuais ou o olhar voyeur sobre a nudez de Edwige Fenech, há que acrescentar as tensões ideológicas presentes na militância comunista do protagonista (Renato Pozzetto), na sua briga com a extrema direita ou nas dificuldades para integrar a homossexualidade de Claudio (Massimo Ranieri) no seu ambiente.
No caso do giallo poderia extrair mais casos paradigmáticos. No documentário menciona-se Tutti i Colori del Buio, de Sergio Martino, e comenta-se a influência que a criminalidade comum na altura teve nele (caso Fenaroli). Mas por falar especificamente nos anni di piombo, sendo um giallo stricto sensu também de Sergio Martino, e aliás precedente claro do slasher; I Corpi Presentano Tracce di Violenza Carnale (1973) também mostra uma influência notável da crise de legitimidade das instituições do estado, a começar pela polícia. E, por certo, a contradizer o argumento de Ruth Glynn, o seu enredo desenvolve-se em Perugia e Tagliacozzo. A sinopse fala do típico assédio dum maníaco assassino a umas universitárias de “costumes relaxados”. Se o misterioso vilão é capaz de acabar com tantas moças não é só pela inoperância da polícia. Também é pela falta de confiança entre as potenciais vítimas e as forças de segurança devido aos numerosos conflitos políticos, como se deduz do discurso do Inspector Martino (Luciano De Ambrosis) na universidade. É assim que a intriga desemboca num enredo do tipo detetive amador, um elemento comum com a maior parte dos gialli.
A meio caminho entre o giallo e o poliziottesco, está La Polizia Chiede Aiuto (1974), subvalorizado filme de Massimo Dallamano onde clássico vilão de identidade desconhecida tem por trás uma complexa conspiração de corrupção de menores. Já no início, a representante do ministério público encontra por acaso num vídeo policial sobre uma revolta na rua, uma dica sobre o caso do misterioso suicídio da jovem Silvia Polvesi. As pesquisas da fiscal e do comissário Silvestri conduzem a uma rede que implica altas esferas da república. Os protagonistas deverão capturar o assassino e assegurar que conserve a vida face aqueles querem silenciá-lo.
Poderíamos continuar com a visão duma Igreja corrompida (Non si Sevizia un Paperino, La Casa dalle Finestre che Ridono, Solamente Nero ou Chi l’ha Vista Morire), a burguesia sem escrúpulos na procura do lucro (a trilogia de Lenzi, L’Assassino ha Riservato 9 Poltrone, 5 Bambole per la Luna d’Agosto ou Ecologia del Delitto) ou simplesmente as referências superficiais no fundo, como os cartazes sobre o black power ou o retrato de Mao Tse-tung no quarto que partilham Sam e Giulia em Roma (Tony Musante e Suzy Kendall) no filme L’Uccello dalle Piume di Cristallo. O tema dava para muito mais.
O tratamento global do exploitation italiano permitiria, por exemplo, observar como uma inocente conversa sobre a manipulação dos meios de comunicação a respeito das Brigate Rosse entre Ruggero Deodato e o seu filho, esteve na origem do filme de culto Cannibal Holocaust (1980). De facto, e apesar da distância geográfica e temática, o sensacionalista Cannibal Holocaust é, ao mesmo tempo, uma crítica ao sensacionalismo na imprensa; outro ingrediente da complexa conflitualidade política italiana.
Em definitiva, That’s la Morte: Italian Cult Cinema and the Years of Lead é um tema apaixonante e uns recursos ótimos, para uma oportunidade claramente perdida.