Há problemas muito sérios com Ma, filme de terror que chegou à tela por estas latitudes há duas semanas. E não todos têm a ver com o facto ter sido elevado artificialmente pela crítica.
O trailer é, como sempre, explícito: um grupo de adolescentes conseguem eventualmente ajuda para comprar álcool de Sue Ann “Ma” Ellington (Octavia Spencer), uma afável senhora afro-americana que trabalha de subalterna em uma clínica veterinária local. Na medida em que se estabelece uma relação de cumplicidade entre ela e os jovens, Ma oferece-lhes o seu porão para celebrarem festas fora do espaço público. A coisa começa a ir mal quando a senhora exibe um comportamento obsessivo e exige do grupo uma completa atenção. E certamente, o panorama não melhora quando chegamos a conhecer um traumático incidente passado entre ela e os pais dos adolescentes…
O problema principal de Ma enquanto filme de terror é que não provoca terror. Há um certo desleixo na construção de cenas que o elevem dentro do género. No plano narrativo, o filme não sabe decidir-se entre duas perspectivas. A primeira tem a ver com a construção de uma antagonista bivalente, no sentido de Annie Wilkes em Misery, ou trágica como em Carrie; com quem foi abusivamente comparada. O backstory de Ma, inicialmente ausente no guião, faz com que a antagonista não seja de modo essencial um monstro e até seja uma personagem com quem se pode simpatizar. A segunda perspectiva, é o emprego dum elemento muito típico: a vingança deslocada ou a punição das gerações novas por pecados cometidos pelos pais. No slasher da década dos 80, era um recurso comercial: o antagonista vingava-se das gerações novas porque o público prefere ver personagens jovens e atractivos na tela. A escusa para mudar o alvo acostuma a ser que os moços “recriam” simbolicamente o evento que dá origem ao mal. Contudo, esta operação acabou por constituir uma alegoria da reacção conservadora no EUA, quando os filhos pagam pelo pecaminoso clima cultural progressista de finais dos 60 e inícios dos 70.
Em Ma, o paralelismo não se corresponde. Ela é uma afro-americana de origem humilde, preguiçosa, tagarela, festeira e expansiva. Um autêntico estereótipo. A base de certa empatia ou compreensão pela nossa parte, reside no facto de ela ter sofrido uma humilhação passada a mãos dos seus congéneres brancos. Mas comete a injustiça de intentar cobrar-se a vingança de outras pessoas brancas que nem nasceram quando essa humilhação foi cometida. Não há aqui um certo comentário sobre as relações raciais em EUA? E não é esse comentário bastante pouco adequado?
Poderia objectar-se que vamos demasiado longe, que talvez no filme cristalizam de modo inconsciente ideias que pairam no clima cultural da época. Dá para duvidar na discussão que se produz no climax da história e que pontifica a ausência de responsabilidade dos personagens jovens e até a redenção dos adultos brancos com má consciência (na personagem interpretada por Juliette Lewis). Mas sem chegar ali, Ma mantém isolada Maggie do circundante mundo branco, e pinta literalmente de branco Darrell (Dante Brown), único adolescente afro-americano do grupo de amigos. Neste senso, não é difícil ver Ma como uma condena liberal das políticas de reparação da opressão racial sofrida pelos afro-descendentes, ou como a sugestão de que boa parte da população preta vive do vitimismo, face personagens positivos como Darrell que não culpa os brancos ou Maggie, que consegue rachar violentamente com essa dinâmica.