Nihilismo conservador no Joker

É difícil perceber como é possível que mesmo antes de ser estreado um filme, o público se divida entre aqueles que pegam na bandeira do louvor entusiasta e os que quase propõem o boicote. Imagino que seja um sintoma desta época que, por vezes, parece focada na celebração das chamadas guerras culturais quando restam um monte de batalhas materiais ainda por lutar.

Porém não é complexo ver este tipo de polémicas como parte da própria promoção. E Joker, precisa disso? É difícil dizer. Com certeza, o filme de Todd Phillips tem valores próprios, alguns unanimemente reconhecidos; como a envolvente interpretação de Joaquin Phoenix. Aliás, é um bom produto de entretenimento. Ora bem, chegou a ser comparada com Taxi Driver, e é preciso acalmar um pouco.

O enredo é bastante conhecido já. Arthur Fleck é um cómico fracassado, com problemas mentais e que mal vive a fazer de palhaço. Com um passado marcado pelo abuso, Fleck ademais está ao cuidado duma mãe dependente e dominante. Toda uma série de circunstâncias confluem para que o desventurado protagonista se sinta atraído por uma resolução violenta da sua triste situação. E como estamos a tratar com um ícone da cultura pop, não é segredo que o pobre Arthur eventualmente virará no Joker, nêmesis de Batman e um dos super-vilões mais célebres.

Dalgum modo, é o interessante caminho inverso do que denominei “descrédito do herói”. Se, muito especialmente, desde 2001 existe uma produção cinematográfica na linha cínica da era de bronze da banda desenhada, onde se questiona os valores morais e a ordem social que acabam por defender os super-homens; neste caso, temos a humanização dum super-vilão oferecendo-lhe um passado traumático, um presente precário e toda uma série de sonhos quebrados.

Então, existe alguma margem para a polémica? Na minha opinião, há. Existe esse fundo da masculinidade em crise: do homem efeminado, vitimado, incapaz de prover o sustento económico doméstico, ignorado pela mulher objecto do seu interesse sexual e relegado ao cuidado duma familiar dependente e às vivências no mundo da fantasia compensatória. O incidente do metro serve como catalisador para a reconquista da sua sua auto-estima. É o descobrimento da violência, o irracionalismo e a espontaneidade agressiva e eloquente. Em definitiva, da sua masculinidade, ou dos elementos frequentemente associados a esta. E há que dizer que Arthur mora num mundo onde abraçar esta estratégia parece dar resultados.

Até isso poderia ser visto como a abrigar um sub-texto progressista. Ao fim e ao cabo, Arthur é também uma vítima do sistema, dos cortes orçamentários naquilo referido à protecção da cidadania vulnerável, da corrupção que permite o abuso da classe dominante; e aqui, o retrato da família Wayne é delicioso, com o seu patriarca burguês e populista. Contudo, o filme não parece querer comprometer-se com as implicações mais interessantes que se poderiam derivar do seu enredo. Por um lado, evita uma relação directa entre a tragédia da família Wayne e o Joker na linha do Batman de 1989; o que converteria a rivalidade entre herói e vilão numa questão pessoal. As dúvidas não resolvidas sobre a verdadeira ligação entre o Joker e Bruce Wayne parece formular reticências na hora de equipará-los moralmente, a maneira mais lógica de contornar o maniqueísmo; na linha da banda desenhada “The Killing Joke” (1988) onde, por outro lado, parece inspirar-se para o percurso dramático de Arthur Fleck.

Mas o que certamente brinda um cheirinho reaccionário ao conjunto é o comportamento colectivo. Se a situação social de Gotham City parece justificar uma rebelião popular contra uma desigualdade criminosa, esta deixa de ser atractiva quando a multidão age sem programa, sem qualquer espírito construtivo e acaba por elevar a símbolo ou líder do seu movimento uma figura sinistra como o Joker; encarnação da violência desinibida e sem direcção. Pelo que o status quo, finalmente e por ruim que seja, é o horizonte mais desejável.

Este desprezo aristocrático e niilista pela massa, devido à sua contextualização, não chega a ser tão de direitas como essa fantasia fascista chamada The Dark Knight Rises, onde Bane instaura uma espécie de soviete em Gotham e profere discursos marxistóides desde o prédio da bolsa; numa sátira de saldo da retórica esquerdista.

E seja como for, no final, nunca um filme acaba por ser mais fascista do que os próprios fascistas de carne e osso. Justo em 2012, a coincidir com a estreia de The Dark Knight Rises, um perturbado disparou 12 pessoas numa sala de cinema. Os guardiões da moral, como sempre, culpabilizam a influência dos filmes, da ficção ou, globalmente, da cultura. Isso num país que se nega sistematicamente a revisar os problemas estruturais que bem podem estar por trás do clima de violência do que não parece nunca desligar-se.

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