Não podes matar o bicho-papão

O meu descobrimento do cinema de terror foi quando criança, nos anos 80. Cresci fascinado pelos grandes ícones do slasher. Foi inevitável ficar triste quando uma infinidade de sequências desfiguraram estes monstros até a paródia.

O melhor deles foi, com certeza, Michael Myers; antagonista dum dos melhores filmes de terror de sempre: Halloween (1978). Se Black Chrismast (1974) é considerado comummente o primeiro slasher, é a obra de John Carpenter e o seu extraordinário sucesso a partir das críticas positivas de Tom Allen e Roger Ebert, os principais responsáveis de popularizar os clichés do sub-género no mercado norte-americano; iniciando uma longa e extenuante série de imitações, a incluir sequências desta. Como acontece sempre que se incrementa o número que acompanha o título, a qualidade diminui.

A sexta-feira passada, estreou-se oficialmente o trailer do que será o décimo-primeiro filme da saga; o décimo com Michael Myers (não aparece no terceiro). As dicas que oferecem de momento parecem remeter ao filme original e, de facto, recuperam o protagonismo de Jamie Lee Curtis no seu clássico papel de Laurie Strode; final girl precursora, agora virada numa badass da terceira idade. Na medida em que consigam ligar a história com a sua origem e contornem a tentação da redundância, os fãs ficaremos gratos; porque o trabalho não é fácil.

O problema

Era suposto que Michael Myers e o seu perseguidor, o doutor Loomis (Donald Pleasence), morressem na sequência Halloween 2 (1981). Este feche abrupto permitia a ideia de continuar Halloween como uma colecção de segmentos de terror independentes, na linha de Masters of Horror, apenas ligados pela festividade do final do verão. O experimento em Halloween III: Season of the Witch foi uma absoluta porcaria, só parcialmente devido à ausência de Myers.

Dwight H. Little e o guionista Alan McElroy decidem que para o quarto capítulo, Myers e Loomis devem reviver pela magia do capitalismo. Não conseguem envolver Curtis no assunto, o qual é uma chatice porque na segunda atribuíam a Myers motivações fratricidas (Strode era a sua irmã). Assim que inventam uma nova familiar: a sua sobrinha Jamie Lloyd (Danielle Harris). A crítica não mostrou piedade, o que é um bocado injusto: o argumento não é demasiado original e não acrescenta nada relevante, mas tem uma surpresa final bastante digna que poderia ter significado um feche decente para a franquia.

O capitalismo, outra vez. Graças à ambição por espremer o êxito de Carpenter, produzem infelizmente Halloween 5: The Revenge of Michael Myers (1989) e a bodeguice Halloween: The Curse of Michael Myers (1995), onde Myers não é mais do que uma marionete teledirigida por um culto druídico. Este é o nível. Ambas fitas são totalmente negligenciáveis e levam à inevitável pergunta de que faz Donald Pleasence ainda ali. Não voltará devido ao seu triste falecimento antes do estreio da sexta sequência.

Deixariam o assunto aqui? Pois claro que não! Sem o doutor Loomis, para Halloween H20: 20 Years Later, recuperam Laurie Strode. A crítica e o público são benevolentes. Julgo que foi mais por ganas de salvar a franquia que pelos méritos da produção, indistinguível do declive do slasher na década dos 90. O único que acrescenta a presença de Jamie Lee Curtis é oxigénio para uma série agonizante. Segundo a actriz, era suposto aniquilar o bicho-papão de vez. Mas desconhecia a existência duma cláusula no seu contrato: Myers não morre nunca.

E é assim que Rick Rosenthal assume a direcção da oitava sequência. Se na segunda pretendeu assassinar Myers por vias lógicas (a confrontação com Strode e Loomis no hospital), neste filme intenta assassinar o público de aborrecimento. Strode não dura mais de 10 minutos na tela, privando o antagonista de qualquer motivação. Por não falar duma trama de estilo Big Brother que produz embaraço e irritação. A pior bosta que alguma vez se fez. Myers não morria nunca? Pois aqui quase é enterrado pela bilheteira.

Carpenter contra Zombie

Mas a falta de criatividade parece um problema sério no mercado norte-americano. Na primeira década deste século houve diversas produções que se propuseram redesenhar os clássicos do slasher e orienta-los para um público millennial. A maioria destes produtos apenas podem ser qualificados de “cocó”. Mas há dignas excepções. The Hills Have Eyes de Aja, The Town That Dreaded Sundown de Gómez Rejón, ou a reinterpretação que fez Fede Álvarez de Evil Dead.

A versão de Halloween realizada por Rob Zombie pertence a este último grupo. Ainda a anos luz de distância do filme de 1978, Zombie oferece uma aproximação diferente e interessante ao pálido antagonista. Encena uma infância de Myers marcada pelo abuso parental e por umas tendências psicopáticas embrionárias. Há incidentes que provocam a alienação do puto e aqui, a sua irmã Laurie Strode (Scout Taylor-Compton), é a única ligação que mantém com a sua humanidade perdida. Zombie ainda realizou uma nova sequência (Halloween II) que… bom, poderia ter-nos poupado.

O conflito entre o pai da criatura (John Carpenter) e o seu novo responsável iniciou-se no documentário Halloween: Inside Story. Ali Carpenter definia Myers como uma «força da natureza» e reconhecia ter sido um erro atribuir-lhe uma motivação reconhecível no guião de Halloween 2 (o intento de assassinar a sua família). Para ele, o que fazia terrífico o antagonista no primeiro filme era precisamente a ausência duma bagagem que contextualizasse a sua conduta. Neste sentido, recriminava a todas as sequências (incluída a de Zombie) de acrescentar elementos explicativos que humanizavam o vilão. Pela sua parte, Zombie disse que intentou falar com Carpenter quando assumiu a direcção do remake, mas que este não mostrou nenhum interesse no projecto.

Este comentário enfureceu Carpenter, quem em 2016 qualificou Zombie de «pedaço de bosta» e de «mentiroso». Argumentou que, em realidade, deu apoio; mas que achava que não devia implicar-se pessoalmente no remake porque a história pertencia agora a Rob Zombie.

Este cruze de acusações deu que falar na altura e John Carpenter intentou pôr fim afirmando que ambos enterraram o machado de guerra. Seja como for, os rumores dum novo filme de Halloween não demoraram, e tampouco o envolvimento de Carpenter, quem parece deter um amplo controlo criativo apesar de não dirigir esta sequência. Depois de conversas com Adam Windgard, a escolha será finalmente David Gordon Green e Danny McBride, que apresentaram um projecto na linha carpenteriana. Tratar-se-a de prescindir de todas as sequências anteriores e continuar a história desde o filme original de 1978. Assim, Laurie e Michael não são mais parentes, e o antagonista recupera todo o seu mistério; o que é um míssil na reinterpretação de Zombie e uma bomba no resto dos gajos da franquia.

Um triste dano colateral

E se a vontade de ignorar todos os capítulos da saga, pode supor um bocado ar fresco na história de Michael Myers, também é certo que se cobra uma “vítima inocente”. Halloween 2, em realidade, é um slasher muito decente. Dirigida por Rick Rosenthal e escrita pelos pais da criatura, John Carpenter e Debra Hill, o filme continua no momento exacto no que acaba o seu antecessor: Laurie está ferida e traumatizada, Loomis está obsessivo por dar caça ao seu paciente e Myers sobreviveu 6 disparos do seu doutor e vaga pelas ruas de Haddonfield. Através dos clássicos planos subjectivos e falsos subjectivos de Michael, percorremos com ele uma vila ainda a comemorar a noite das bruxas. Assistimos à confusão quando se revelam as mortes acontecidas no filme anterior e, finalmente, vemos a ira popular quando se verifica a identidade do homicida. Quando os sanitários introduzem Laurie Strode no Haddonfiled Memorial, sabemos que aquilo vai virar numa armadilha mortal.

A produção foi bastante problemática: houve discrepâncias entre realizador e guionistas sobre o tratamento desta sequência. Rosenthal queria aproximá-la do thriller, enquanto Carpenter e Hill pretendiam orientá-la cara os clichés do terror da altura. O resultado é uma história apavorante que mantém um estilo fiel ao primeiro Halloween, mas a acrescentar gore. O sangue, virtualmente ausente em 1978, cobre agora com frequência a tela. De facto, uma das cenas que dá mais arrepios (a da sauna) está claramente inspirada numa outra semelhante de Profondo Rosso.

A crítica não acolheu bem esta inovação. Ebert, quem louvou a obra original propiciando o seu sucesso na bilheteira, atacou duramente Halloween 2 por este motivo; e chegou mesmo a qualificar a sequência como fruto dum “idiot plot” (argumento que se baseia na estupidez dos seus personagens). Não posso discordar mais: se a comparação com o primeiro segmento é impossível em termos de impacto e originalidade; Halloween 2 mantém, no mínimo, um certo suspense que ainda hoje consegue ser terrífico. Muito por cima do resto dos seus congéneres contemporâneos e, com certeza, do rasto de sequências de nula criatividade que a seguirão.

Ficam as linhas anteriores como uma viva reivindicação do filme e uma entusiasta recomendação na espera de que David Gordon Green e Danny McBride transformem a saga de modo irreversível.

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