2017 não foi um bom ano para sequências, pré-sequências e demais derivados comerciais de antigos filmes de êxito. Quer dizer: não houve surpresas.
No caso da saga de Saw, também não. A últimas entregas desta série lembram um velho relato de Heinrich Böll no que uma família contrata um actor para substituir um parente recentemente falecido, e que a matriarca do clã não perceba a sua ausência durante o natal. Ano após ano, todos os membros da família são progressivamente substituídos pelo mesmo método até que a própria matriarca é revezada. No final temos um amplo grupo de actores que representam uns papeis, uns para os outros, sem qualquer relação com a família original. Também remete ao clássico dilema: se temos um barco que é reparado em ocasiões sucessivas, renovando uma peça de cada vez; quando todas as peças sejam mudadas, poderemos dizer que temos o mesmo barco que no início?
Lá, no ano 2004, James Wan surpreendia-nos com uma versão longa duma sua curta anterior homónima. No início do presente século, o terror incorporava elementos do mundo pós-11 de Setembro. As torres gémeas, o terrorismo, a ocupação do Afeganistão e do Iraque, as prisões de Abu Ghraib e Guantánamo… Assistimos diante das nossas televisões a uma inacreditável banalização da tortura que derivará num sub-género cinematográfico: o torture porn. O filme de Wan introduzia um elemento original a esta série de penalidades sofisticadas: o vilão não intervinha directamente nas mortes, senão que induzia as vítimas a se infligirem danos umas às outras e a si próprias. O resultado foi um sucesso e Lions Gate recolheu anualmente um ovo dourado da galinha.
A alma da festa é o seu antagonista, John Kramer (Tobin Bell): um Torquemada moderno com um sentido da justiça particularmente retorcido quem, mediante o seu pseudónimo Jigsaw, se erige em demiurgo castigador daqueles criminosos que ficam sem condena no mundo terreno. Os desventurados canalhas ficam presos de mil armadilhas e geringonças mecânicas que os fatiam se não estão dispostos a realizar algum sacrifício que expie os seus pecados. Não faz falta dizer que as possibilidades de redenção são extraordinariamente remotas, mesmo num mundo onde não parece existir o tétano.
O problema para a saga (e são as próprias capas dos filmes a fazer spoiler) é que Kramer não sobrevive a terceira entrega. Lástima. Contudo, as gentes do negócio encontraram uma especial forma de estripação da galinha: em ausência de Kramer, serão discípulos, admiradores e até familiares; quem farão o seu sujo trabalho. Assim sai Amanda (Shawnee Smith), quem acaba por morrer. Hoffman (Costas Mandylor), também defunto. Jill Tuck (Betsy Russell)… adivinham? A própria galinha está morta. Essa espécie de bosta chamada Saw VII 3D soava a despedida, com a sua ridícula reunião de mutilados das sequências anteriores. Mas a quarta entrega de Friday the 13th chamava-se “The final chapter”, e ainda vimos até 7 sequências posteriores, sem contar o remake. Rick Rosenthal, John Carpenter e Debra Hill liquidaram Michael Mayers no segundo capítulo de Halloween; mas a magia do cinema ressuscita-o na quarta para mais 5 sequências lamentáveis. Não devimos ser tão ingénuos.
Assim chega Jigsaw, também conhecido como Saw VIII, e o jogo macabro volta a começar. Uns seres humanos desprezíveis lutam por sobreviver na câmara dos horrores enquanto se produz, de modo paralelo, uma pesquisa policial para revelar a identidade do novo assassino. Entre o bocejo e alguma surpresa ocasional, nota-se que os irmãos Spierig pretendem marcar alguma distância com os filmes precedentes. Aqui não se abusa tanto das miudezas e do ketchup, centrando-se mais o enredo no clássico whodunit. O problema é que também não querem ir demasiado longe. Os personagens carecem de qualquer matiz, as interpretações são embaraçosas e o guião tem mais armadilhas do que a própria casa de Kramer.
O pior é que deixa a porta aberta à continuação com dois possíveis candidatos para substituir Kramer, se em Lions Gate decidem seguir remexendo no pouco que resta já do cadáver da galinha. Nem intentem.
- A favor: Intenta que o gore não seja o seu único argumento.
- Em contra: Muitas coisas. O pior é que abra a porta a um eventual Saw IX.